Tic-Tac
Infelizmente, este último ano estive perto deste sacana do ceifeiro. Anda aqui à procura de quem quer levar. Um dos três contemplados já sabe que vai, é factual. Quando não sei, nem sei se ele sabe, e honestamente nem importa. O que importa é que tem a minha idade, casa dos vinte. Conheço-o relativamente há pouco tempo, comparando-me com os restantes, mas não deixo de sentir que faço parte da sua viagem e ele da minha.
E o que quero dizer? Quero dizer: MERDA, merda para isto tudo. A minha vida continua, acho eu que continua. Também não sei. Só consigo imaginar-me no lugar dele. Ele sabe mesmo que não continua. É uma pessoa que tem os seus sonhos, talvez ser pai, casar, fosse um deles, e não vai acontecer. Olha, tem uns meses ou um ano. Deve ser horrível. Teria um ataque de pânico constante. Eu não saberia aproveitar. Como é que se aproveita? Está-se sempre a ouvir os segundos no fundo “tic-tac tic-tac tic-tac”. Uma pessoa nem deve conseguir dormir ou estar no sofá sem fazer nada, porque foda-se, é tempo desperdiçado. Como é que se tem o tempo contado e se aproveita? Eu não sei mesmo.
Por outro lado, é uma bênção. Se calhar ele vai mesmo fazer tudo o que sonhou. Se calhar mais do que as pessoas “normais”, porque sabe quando vai acabar. Enquanto nós andamos aqui a brincar aos imortais e passamos o dia na cama, a coçar tomates, e passa um dia, um mês, um ano, uma década… e xau xau, fizeste o quê da tua lista de sonhos? Nada.
Só espero que não seja doloroso. Espero que seja a dormir. Espero que todo aquele processo não se note (para ele), não se sinta, a sensação de desaparecer ou aparecer, sabe-se lá onde. Sei lá se há Deus, se nascemos outra vez. É o maior mistério do mundo.
Ele tem a minha idade, o mesmo tempo vivido, e é assustador, meio sádico este pensamento, mas acho que é mais fácil numa criança ou bebé. O ser não tem consciência. Está ali livre de stress e medo. Fica na merda quem fica cá. Agora ele?! Foda-se, devia existir idades permitidas para “ir”, e esta não era a certa.
Não sei que lhe dizer. Faço piadas? Vamos ignorar o elefante na sala? Vou-me despedir dele como? Até já? Vamos ser sérios? Vamos chorar? Será que quer mesmo que lhe diga o que estou aqui a escrever agora? Não vale a pena gastar tic-tac nisto. Que sortudo, vai mesmo poder usar a carta do: caguei, vou morrer, em todo o lado. Usar a do cancro não lhe bastou. Que seja tão feliz como foi até agora. Possivelmente mais do que a maioria será, a que fica aqui. Use esta merda como vantagem.
Talvez a morte, consciência da existência dela, seja a maior sorte que temos na vida. Esta constante lembrança de “olha lá, estás mesmo a viver ou só andas a respirar?”
Concluo esta “dissertação” meio mórbida com: seja qual for o teu prazo, saibas dele ou não, aproveita isto, e já agora, já que a tua viagem liga-se a tantas outras, tenta que o capítulo em comum seja alegre.
Lamento se isto te ofendeu ou toca em alguma parte sofrida, mas realmente é o que sinto. Precisava de deixar isto em algum lado, já que duvido que consiga dizer algo parecido a quem quer que saiba do seu tic-tac.
07.03.2024 André Castilho 🖤
Desenho inspirado numa criação de Vonnart